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Seguir indiscriminadamente: o controle exercido nos grupos

Leandro Scoralick & Misael Soares, 2020. 

Atualmente nos deparamos com vários discursos políticos e ideológicos e seus desdobramentos que viralizam em segundos e logo, ganham seguidores e haters, dando origem a padrões de controle nos grupos. A verdade é que todo mundo opina sobre todos os assuntos, mas ninguém, de fato sabe o que acontece por detrás dos bastidores.

O gatilho que nos motivou a escrever este artigo é a efervescência dos conflitos ideológicos em relação ao COVID-19. O assunto requer uma análise de vários campos do saber, mas propomos um recorte principalmente a partir da biologia, da filosofia, psicologia e sociologia.

O país nunca esteve tão polarizado! Os extremos cada vez mais se afastam. Várias pessoas apoiam o lado direito, outras apoiam o lado esquerdo, mas com base em que de fato? Por que as pessoas mesmo com rasas informações sobre determinado assunto, têm pautas de argumentos sobre a defesa de ideias e ideais que não são propriamente seus? Vemos estes extremos superficiais claramente em toda ação humana coletiva. Times de futebol, religiões, partidos políticos e tantas outras empreitadas humanas.

O intuito deste artigo, não é falar especificamente de política e religião ou esgotar qualquer um destes temas, mas trazer o mínimo de lucidez sobre o pensar acerca de um fenômeno que será situado ao longo do texto.

Para tentar minimamente encontrar algumas poucas respostas para o fenômeno, que não se esgota de ser questionado, não pode nunca parar a discussão, isso é ciência e filosofia, vamos partir de referências na teoria da evolução, sociologia, filosofia, principalmente a partir do Discurso da Servidão Voluntária (1549) de Etiene Laboetie, filósofo, francês, do século 16, e a análise do comportamento.

A primeira questão é: por que as pessoas formam grupos, por que necessariamente vivemos em sociedade? Por que preferimos o outro à solidão? (este é o fenômeno) Grosso modo, podemos pensar em um comportamento simples, como carregar uma pedra, individualmente isso é possível, porém, o custo dessa resposta é considerável, a depender do tamanho da pedra, distância e ferramentas disponíveis. Se, no entanto, dispusermos de duas ou mais pessoas, a tarefa se torna menos hercúlea, mas o fato é que eu ou você poderíamos mover a pedra sozinhos e não precisarmos dividir as recompensas, por exemplo, alimento debaixo da pedra ou um tesouro, com ninguém.

A questão mesma colocada por Dawkins (1978), biólogo evolucionista, implica na passagem de genes egoístas a indivíduos cooperativos. Mas a teoria do Gene egoísta não implica, necessariamente, como o próprio Dawkins argumenta, em indivíduos egoístas. Equívoco da interpretação da teoria, principalmente pela ala criacionista.

Os genes de fato eram no início, egoístas, quando a disputa gênica era mesmo individual, porém, falamos agora em organismos, e o conceito de aptidão (BAUM, 2006), ou seja, valor adaptativo, capacidade reprodutiva, logo, de sobrevivência, nos ajuda a compreender o fenômeno. Nossa aptidão é maximizada, em média, quando máquinas de sobrevivência (indivíduos), ou seja, um arranjo de genes se junta a outras máquinas de sobrevivência.

Assim, carregar a pedra se torna uma tarefa de menor custo, as consequências relacionadas à sobrevivência são divididas, garantindo maiores chances dos indivíduos prosperarem. Posteriormente, esses indivíduos irão manter-se dividindo recursos, sinalizando sobrevivência uns para os outros. Assim, o agrupamento gênico, quando expandido para o nível das relações, nos permite concluir que o agrupamento de indivíduos, garante, na média, maior aptidão, ou seja, mais chances das máquinas de sobrevivência reproduzirem-se, garantindo a sua descendência. Então, conforme aponta Baum (2006), o altruísmo tem sido a marca registrada da sociedade e de acordo com Dawkins (1978), sobrepujamos, assim, nossos genes egoístas, enquanto espécie evoluímos. Esse é o sobressalto da espécie humana, por excelência.

Então é fato que grupos se formam, grupos parentais, a princípio, famílias, marcados pelo parentesco, depois grupos maiores, turma da escola, amigos, vizinhos, bairro, trabalho, cidades, populações de uma nação inteira, nacionalidades, torcidas de futebol, etnias, ideologias, grupo de homo sapiens. Um processo natural, nossa espécie é social, não nos deparamos com o quanto somos indivíduos a-individualizados, indivíduos coletivizados.

Em termos gerais falamos aqui de um fenômeno: encontramos nos grupos de pessoas que se amotinam sobre ideias ou ideais de outras pessoas e formam relações intragrupais. São influenciados por um indivíduo a viver uma guerra ideológica com ideais terceirizados.

Sobremaneira este indivíduo, tem como objetivo, manter uma massa de manobra para defender religiosamente, politicamente ou qualquer outra ideologia, o seu ponto de vista baseado num discurso muitas vezes, infundado.

De um lado temos os controladores, indivíduos que produzem discursos e vão amontoando seguidores, pois o amontoar pessoas é algo simples, não carece grande conhecimento, como acentua Platão no Diálogo de Górgias “só exige um espírito sagaz e corajoso e com disposição natural de saber lidar com os homens”. Ele ainda alerta para os riscos quando o indivíduo é um sofista, se sobressaindo até mesmo sobre o sábio “Neste caso, o ignorante tem maior poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio, se o orador for mais convincente…”. Ou seja, a depender do poder de persuasão e não propriamente da evidência do que se fala, o alcance do discurso é inimaginável.

Para Laboetie (2006), são estes oradores na alcunha de chefes, líderes, patrões, políticos, professores, pais, definitivamente, os tiranos conforme expressão do autor (e só o são porque parecem manejar contingências, em sua maioria, coercitivas, mas algumas vezes contingências reforçadoras positivas, inclusive mais perigosas até, pela sutileza),  esses controladores, são muitas vezes, seguidos, indiscriminadamente.

Laboetie se questiona, incomodamente, por que muitos se submetem ao julgo de um? Por que as pessoas respondem muito mais aos discursos dos controladores, do que propriamente à verdade?

Ele descreve a realidade de milhões de homens a servir, curvados, tal como pássaros e peixes, atraídos por iscas, armadilhas, que sofrem com paciência e são pegos, conforme o autor, por um engodo insignificante passado às nossas bocas, um mel ideológico qualquer que já é suficiente, para não obedecer simplesmente, mas servir e não obstante, a prestar devoção, reforçar o tirano quando nos pune, assim, nos fazemos oprimir, nos fazemos ser esmagados, decapitados intelectualmente, procuramos por todos os meios, o controle do outro sobre nossas vidas, sobre nossos comportamentos, procuramos um motorista para o ônibus de nossas vidas. Laboetie aponta que o primeiro motivo para tal barbárie, seria já nascermos e termos sido criados na servidão.

É importante notarmos que os controladores, estão em busca de poder, pois poder implica em previsão, controle, segurança e sobrevivência. Mas para isso, precisa do controle sobre as massas.

Agora apontaremos nossa visão para as massas, a base da pirâmide, os leigos. Um ditado popular diz: “O poder emana do povo”, mas o poder que está na mão povo, se baseia no ideal de um, muitas vezes, ignorante. Assim, ao nascermos na servidão, não conhecemos a liberdade do pensamento, nossa resposta condicionada é de se sujeitar incondicionalmente e irracionalmente aos controladores. Será essa uma condição reversível? A chave é o conhecimento? O pensamento? A ampliação do nosso repertório?

Uma visão behaviorista comunga da visão de Laboetie, por se tratar contextual, nascemos em ambientes controlados coercitivamente, ou seja, punições e ameaças de punição são manejados por outros, geralmente líderes de grupos políticos, religiosos ou de qualquer outro grupo que seja. Se não conhecemos a liberdade, ou seja, se não podemos escolher, e a base para isso são contingências de reforço positivo (BAUM, 2006), não discriminamos outras formas de vida possíveis, pois o ambiente que nos toca é “ideologicamente” natural e coercitivo.

Laboetie também aponta que os homens, sob a tirania, de um grupo, de um líder, se tornam covardes, seria uma causa, para o filósofo, do seguir indiscriminadamente. Comportamentalmente falando, em condições aversivas, coercitivas, que se estendem ao longo da vida do sujeito, contingências que diríamos matriciais, conforme definição de Guilhardi (2015), respostas de contracontrole ou enfrentamento, se tornariam escassas, menos prováveis, pois não discriminamos a ocasião e não fomos treinados nessas condições para o pensar, o opor, não existe “arma argumentativa” em nosso repertório, assim, a sujeição, “comportamento de tapete”, se torna quase que um padrão fixo de ação.

Laboetie diz que nessas condições, as pessoas vão para o castigo como que entorpecidas, como se fossem cumprir uma obrigação, vivemos experimentalmente, no mundo real, em condição de desamparo aprendido (Banaco, Zamignani, Costa e Dantas, 2015), tal como Catania (1999, p. 112) alerta “uma resposta que jamais é emitida, não pode ser punida”. Ou seja, se não me oponho, se não penso, se não me comporto, logo, não sou punido.

Assim, é como se não houvesse respostas de fuga e esquiva eficazes, e os estímulos verbais, muitas vezes produzidos pelas relações de grupo, derivadas do líder (que sinalizam o que fazer), se tornam estímulos associados às possíveis respostas de enfrentamento. Os controladores dizem: “siga o líder”, “o mestre mandou”, “não fale com jornalista”, “não faça de outro modo”, “você tem que pensar dessa forma”, “os valores são incontestáveis”, “minha vontade é encher tua boa de porrada”, “não devemos nos opor”, “isso sempre foi assim”, “dizer isso é errado”, “o professor que tem razão”, “na academia, não é lugar de questionamentos”, vão adquirindo valores aversivos, controlando mesmo a possibilidade do indivíduo em grupo, de pensar em respostas alternativas, ou seja, ao pensar, dói, isso me custa, um pensamento foucaultiano a partir da ficção (nunca tão real e presente) do panóptico de Bentham, constatamos que enquanto somos vigiados pela luz escancarada de ideologias quaisquer, nos sentimos na verdade, observados e seguros, não há saída, não há respostas de fuga e esquiva eficazes.

Isso produz um estado de servidão gentil, produzindo autoregras diversas, contingências que sinalizam que o melhor caminho é ceder, na verdade, o correto é servir, o “bom” é que nossa vida seja guiada por outro. Repetições de consequências vão formando padrões de comportamento, seja através de palavras ditas pelos nossos pais, amigos, líderes, jogadores de futebol, youtubers, influencers digitais, gurus da autoajuda e todos mais. Aprendemos assim, uma forma de sobreviver. Esta voluntariedade de servir é aproveitada pelos despontados líderes que manipulam sutilmente, o comportamento e até mesmo, o sentimento das pessoas.

Em alguma medida, o controle instaurado no grupo, dá conta de relações tão arbitrárias, que o pensar adquire um padrão de reprodução, assim, imitamos formas de ver, ouvir, falar e pensar. Montaigne (2017) até arrepia, pois ele se questiona se haveria algum vício pior do que aqueles que vão contra a própria consciência e o conhecimento natural, ou seja, que vício é esse, ou padrão de comportamento, reforçado no grupo, que nos faz “desconscientizar”, ou seja, que mina nossa capacidade natural de discriminar e o questionar do conhecimento natural, ou seja, derivado das ciências naturais, do mundo das coisas? Como podemos conjecturar um ambiente que produz estímulos capazes de questionarmos um argumento refutado pela ciência há mais de 2 mil anos? Como o terraplanismo? Pitágoras não existiu? E Fernão de Magalhães? E Copérnico, foi um mito?

Em grupos, construímos mitos, porque isso é reforçado imediatamente, nos ajuda a mascarar a realidade muitas vezes aversiva do ambiente, que implica em mudança de comportamento para se alterar uma realidade, implica em lidarmos com a punição dos nossos próprios erros, damos de ombros para as evidências. Conforme Onfray (2018) a vida segue e continuamos vivendo como se Darwin nunca tivesse existido. Ou seja, ignorando evidências e separando o homem da natureza, dando-lhe destaque especial.

Neste contexto, em que falamos sobre os controladores discursivos e o “povo”, temos um cenário completo de micro religiões, cenário ideal para a fertilização dos “deuses” e dos “mitos”, discursos amistosos de interesses do povo para agregar mais e mais pessoas, semeando um incontável número de ideias (regras) que devem ser seguidas ou pregadas e do outro lado, os leigos, fiéis condicionados a acreditar que seguindo estas regras, estarão seguros, sobrevivência garantida, paraíso garantido!

Em alguns contextos empresariais, dizem; “É proibido falar sobre, esporte, política e religião”, estes assuntos dividem as pessoas. São estes, os pontos de maior vulnerabilidade ideológica, pois são manipulados pela retórica e operam a partir da paixão. Atualmente temos muitos outros temas controversos, mas especificamente, por estes, principalmente política e religião, as pessoas se dispõem a evangelizar e catequizar.

Tal mecanismo nos força a evitar e condenar qualquer coisa que seja diferente daquele conjunto de regras, muitas vezes com respostas prontas e infundadas “é assim porque é e pronto”. As principais ideologias que foram bem fundamentadas com argumentos e evidência para possíveis objeções geralmente calam as pessoas, pois o exercício do pensar é caro, alto custo de resposta, assim, ignorar é a resposta mais provável. Mas os ideólogos do comum se tornam, assim como seus seguidores, especialistas no em tudo, pois têm regras para cada fração de comportamento a ser emitido.

Regras, portanto, são instauradas dentro do grupo, e elas sinalizam possibilidades de reforço e punição, sutilmente ou muitas vezes, explicitamente, essas regras nos dizem como nos comportar e o que podemos esperar, assim, como consequência, compartilhar dos recursos e proteção que pertencer ao grupo garante (BAUM, 2006), mas desde que reforçamos seus líderes e adotamos uma postura proselitista para com os pertencentes de outros grupos, ou seja, os hereges, os outros, os esquerdistas para os direitistas, os direitistas para os esquerdistas, cruzeirenses, atleticanos, republicamos, democratas, cristãos, outras religiões, cristãos, ateus, nobres ou ressentidos, diria Nietzsche.

Indivíduos vivendo em grupos, portanto, compartilham reforçadores, regras, punições, ameaças de punição, respondemos às mesmas contingências, o jugo para o integrantes do grupo, é o mesmo. O jugo é uma peça de madeira que é atrelada à cabeça dos bois e à carroça, os bois só podem caminhar para o mesmo lado, não há possibilidade de responder às contingências distintas. Assim, passamos dentro do grupo, a desejar as mesmas coisas, não porque elas são necessariamente boas, reforçadoras, mas só as julgamos boas porque a desejamos (Spinoza, 1957), mas a partir dos julgamos de outros. Ou seja, dentro do grupo, desejamos, ou melhor, respondemos às contingências produzidas pelo grupo, sem termos possibilidade de avaliarmos ou olharmos para outro lado, sem discriminar o mundo.

Podemos evidenciar que dentro de um grupo, determinadas pessoas podem até não concordam com todas as coisas que acontecem ou são pregadas, mas de certa forma, se sentem ameaçadas de dizer contrariamente com receio de serem punidas, ridicularizadas ou rejeitadas pelos seus apoiadores.

As pessoas buscam constantemente aceitação em algum grupo e isso é extremamente reforçador para a nossa espécie, como já mencionamos anteriormente, assim, se sujeitam e incorporam as práticas e discursos dos fundadores e evangelistas de tais ideologias.

Por que as pessoas pensam? Para buscar respostas… e quando as encontramos nos calamos diante de um ponto final, encarado como verdade. Nós não precisamos ter um raciocínio para responder quando é 5 + 5, não é mesmo? Por que exatamente já sabemos a resposta, mas uma criança em processo de aprendizagem deste cálculo repete diversas vezes contando os dedinhos para responder… Isto é pensar, ela está tateando mundo! Ela vai estabelecer suas próprias regras, constatando um fato.

Então, o maior perigo das ideologias são as respostas prontas para tudo, respostas estas que se espalham como praga, principalmente por causa da tecnologia, e as pessoas que não aprendem a pensar e tatear o mundo se desprendem do essencial contato com a vida.

“Não sofremos mais com a raridade do saber: estamos perdidos na própria abundância da informação.” (LIPOVETSKY, SERROY, p. 22, 2011).

Vivemos atualmente, envolvidos por contingências digitais, trilhões de bytes de informações, notícias fake, jornais, revistas, televisão, internet, ipad, ipod, iphone, smartphone, papiro, youtube, instagram, tinder, facebook, twitter, linkedin, palestras, autoajuda, gurus, controladores os mais diversos, contingências as mais diversas, podemos nos servir à vontade e o melhor, não acaba, e pior, parece que não saciamos.

Podemos ouvir um advogado falar de psicologia, um médico falar de sociologia, um blogueiro pode falar do amor com aparente propriedade, um youtuber pode ser sua referência profissional, que você aposta que vai alavancar sua carência, o falar se tornou tão indiscriminado quanto o escutar, não importa quem diga, o que diga, a função do dizer, o que importa mesmo é dizer, as palavras devem logo sair da boca, junto com as imagens. Eu quero é like! Nossa nova versão de reforço social generalizado.

Lipovetsky e Serroy (2011) apontam que não é da carência que sofremos, que nasce o desnorteio, mas do hiper, ou seja, do excesso, é ele que devemos interrogar. Não há mais raridade do saber, a própria informação nos faz perder, esse excesso só faz mal quando não discriminamos, quando somos tão translúcidos, que qualquer coisa passa por nós como verdade. Laboetie diz que quando apanhados na rede, por mais frágil que a rede seja, o povo é tão frágil de enganar e submeter que quanto mais dele se zomba, mais se rebaixa, os próprios tiranos se espantam com o quanto homens podem suportar outros homens que lhes fazem mal.

A questão toda, porém, se resume a isso, as redes que nos prendem e que depois, nos fazem permanecer, ou seja, que instalam o comportamento de seguir e depois mantêm o seguir indiscriminadamente, são muito frágeis, se parcamente analisadas. Ou será que na verdade, os apanhados é que são frágeis? Repertórios escassos? Conforme Baum (2006), os escravos se sentem felizes porque são controlados por reforço positivo, mordemos a isca do reforço positivo, algumas vezes, negativo, evitamos punições imediatas quando, por exemplo, vamos manifestar uma opinião diferente do grupo, abaixamos a cabeça, nos amordaçamos, nos deixamos controlar por promessas de reforço que nunca virão, ou ameaças de punição, que certamente virão.

Se continuarmos mordendo a isca e nos mantermos com ela na boca, ou seja, submissos, comprando ideias sem evidência, sem selo de qualidade, continuaremos sendo “escravos felizes”. Portanto, “Não é a informação que falta, ela transborda em nós; o que falta é um método de orientação nessa superfatura indiferenciada, para que se alcance uma distância analítica e crítica, que será a única a lhe dar sentido.” (LIPOVETSKY, SERROY, p. 81, 2011). Esse “método de orientação” é que nos falta, a capacidade de discriminar fatos de mitos, de superstições. Baum (2006) é providencial, máquinas de sobrevivência que seguem indiscriminadamente, ou seja, copiam qualquer prática que apareça ao seu redor, é pior do que indivíduos que copiam práticas seletivamente, essa é a questão, copiar seletivamente, seguir discriminadamente.

Uma ferramenta é essencial, para conseguir seguidores desta forma, pois ninguém, na história, conseguiu por si só, atrair grandes massas. Os idealizadores destas ideologias precisam criar cópias fiéis de si mesmo, mas sujeitas ainda ao seu comando. Discípulos que levarão a ideologia de forma exponencial como células que se multiplicam. Defensores de suas marcas pessoais na sociedade, pessoas dispostas a lutar por esta causa. Não é assim que as empresas usam influencers digitais para alavancar suas marcas e suas empresas? Vamos nos juntando, nos amontoando, nos ignorando.

Por fim, ao nos juntarmos a um ideólogo qualquer, com função de alcançar reforçadores imediatos ou mesmo evitar punições, seremos livres para servir, não para pensar, seremos controlados por reforçadores e punições sempre liberados por terceiros, viveremos em um mundo arbitrário, não teremos contato com o mundo propriamente, mas com as regras sobre o mundo formuladas por terceiros, viveremos em aquiescência, seguindo a regra pela regra em si e para não desagradar o controlador, não aprendermos  rastrear o mundo, ter  acesso a reforçadores naturais ou evitar punições, produzindo assim, nossas próprias regras.

Quando seguimos indiscriminadamente, diminuímos nosso repertório, nos limitamos jogar o jogo, sem arriscar.

(Todorov & Moreira, 2009), nos alertam que uma teoria que não contraria o senso comum tem muito mais chances de conseguir adeptos do que outra que nos faz repensar o mundo, repensar nossos comportamentos e nossos determinantes, tocar nosso jugo, ou seja, o que nos controla, o que nos reforça, o que nos vendem, por que compramos, por que postamos, por que curtimos, por que seguimos no insta.

Segundo Onfray (2018), o real não vem até nós se não caminharmos até ele, então se não caminharmos em direção ao real, passaremos a vida ao largo do mundo, estaremos no mundo, mas fora dele. Estamos vivendo sem sentidos, sem sentir o mundo, sem tocar as coisas, sentir os cheiros, experimentar a dor, encarar o sol, tomar banho na chuva, experimentar!

Comecemos então a discriminar com nosso próprio corpo, com nosso próprio cérebro, pensar o mundo sem a lente do outro, ou ao menos, discriminar e escolher melhor os seus outros.

Referências

BAUM, William M. Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução / William M. Baum; tradução Maria Teresa Araújo Silva… [et al.]. 2. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre: Artmed, 2006.

CATANIA, A. C. (1999). Aprendizagem: Comportamento, linguagem e cognição. (D. G. Souza, Trad – 4ª ed.). Porto Alegre: ArtMed. (Trabalho original publicado em 1998).

DAWKINS, RICHARD. O Gene Egoísta. Trad. Geraldo Florsheim, Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Universidade da Universidade de São Paulo, 1978.

DE CARVALHO PACHECO BITTENCOURT, A.C; CAETANO DE ALMEIDA NETO, E; RODRIGUES, M.E; BRITO ARARIPE, N. Depressão – Psicopatologia e Terapia Analítico-Comportamental. 2ª.edIção, Curitiba: Juruá Editora, 2015.

Guilhardi, H. J. (2015). Contingências de reforçamento matriciais. Disponível em: http://www.itcrcampinas.com.br/txt/matriciais.pdf

LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso da servidão voluntária. Tradução de Casemiro Linarth. São Paulo: Martin Claret, 2009. Título original: Discours de la servitude volontaire.

Lipovetsky, Gilles; Serroy, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Tradução Maria Lúcia Machado. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

MONTAIGNE, Michel de, 1533-1592. Ensaios: Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios / Michel de Montaigne; tradução Julia de Rosa Simões. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2017. 240 p.

ONFRAY, Michel. Cosmos: uma ontologia materialista. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

PLATÃO. Górgias. Trad. Manuel de Oliveira Pulquério. Edições 70. Lisboa, 2010.

SPINOZA, Benedictus de. Ética, trad. Lívio Xavier, Rio de Janeiro, Ediouro/Tecnoprint, 1957. Ética, parte III, p. 87). TODOROV, J. C.; MOREIRA, M. B. (2009). Psicologia, comportamento, processos e interações. Psicologia: Reflexão e Crítica, 22, 404-412.

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