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O caminho da superstição

Leandro Soares Scoralick, 2021.  

Como se constrói o caminho para a superstição? Quais são as contingências que instalam e mantem este comportamento? Por que muitas vezes, preferimos a ilusão à realidade? Na verdade, por que muitas vezes não discriminamos a realidade e, se conseguimos fazê-lo, por que ainda a ignoramos? Onde o sapiens quer repousar de fato? Por que as utopias nos enchem os olhos?  O que temos para colocar no lugar destas? O que poderia Spinoza nos alertar sobre as nossas ilusões? Ou na verdade, sobre aquilo que para nos é reforçador? A saber, segundo ele: a riqueza, honra e prazer sensual. Seriam estas novas/velhas contingências que nos mantém no caminho da superstição? O que Platão tem haver com isso? Como em O mito da Caverna ou Alegoria da Caverna, Platão nos dá amostras de como as pessoas vivem nas sombras e as tomam como verdade? O que Platão coloca no lugar das sombras? Enfim, o objetivo deste texto não é responder a estas questões plenamente, não há tamanha vaidade, mas também não nos enganemos com modéstia, este é um exercício deveras necessário, que poucos se dispõe a fazê-lo, o da dúvida e questionamento, o interrogativo! Pois os problemas humanos não cessam e novas relações, novas questões, novos ensaios serão sempre necessários.

Obra inacabada do filósofo dos filósofos Baruch de Spinoza, o Tratado da Reforma do Entendimento, ou Tratado da Correção do Intelecto ou ainda Tratado da Emenda do Intelecto, data aproximadamente de 1661 a 1662. Nela, Spinoza faz uma crítica aos costumes e modo de vida da época, a fim de apontar possíveis alternativas para esses vícios ou superstições que contaminavam a sociedade da época. Estranho o quanto de 1661 a 2021, os males são os mesmos, metamorfoseados, verdade, mas mantém a mesma função de controle sobre os nossos comportamentos e, principalmente, inibindo nossa capacidade de discriminar contingências efetivas de sobrevivência e quiçá, de melhor convivência entre nós. Spinoza buscará, portanto, um caminho novo, “um método” que afastaria o homem da superstição e o levaria para o que ele chama de “sumo bem” ou “verdadeiro bem”, o qual o filósofo define como a apreensão da verdade de que “tudo o que é feito se produz segundo uma ordem eterna e segundo certas leis da natureza” (P. 25.). Claramente Spinoza já está apontando o que viria se fundamentar posteriormente, no sustentáculo da Ética (1677), obra de maior destaque do autor, além de já apontar um de seus inimigos preferidos: a superstição.

O Mito da Caverna ou Alegoria da Caverna é um diálogo presente na República, cujo interlocutor de Sócrates é Glauco, a caverna é uma metáfora utilizada por Platão para dentre outras coisas, demonstrar como as pessoas respondem a contingências muitas vezes supersticiosas, ou seja, tomam regras ou autoregras como se de fato fossem as contingências em si, ou mais, Platão demonstra nosso apego às superstições, a um modo de vida fixo, rígido e repetido.

No diálogo, Platão descreve uma condição em que prisioneiros em uma caverna, os quais viviam lá desde a infância, acorrentados pelos pés e pescoços, “de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto.”

Existe ainda na caverna, um muro ao longo de um caminho e atrás desse muro, pessoas carregam várias coisas, objetos os mais diversos, figuras de animais, estátuas de homens, enfim. Os homens que estão no interior da caverna, veem as sombras nas paredes destes objetos e seus movimentos projetados por outros homens, assim “os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados.” Platão então esclarece que os homens respondem às sombras e elas são, portanto, naquela condição, a realidade daqueles homens.

Uma possível interpretação, dentre várias, é que Platão está demonstrando como a superstição pode ser fruto de uma condição, a saber: olharmos sempre para os mesmos lugares, respondermos sempre aos mesmos estímulos, carecermos de variabilidade comportamental, não questionarmos a realidade, expondo como os seres humanos parecem se comportar como fantoches, mesmo que ninguém esteja puxando as cordas (GRAY, p. 95, 2018). Aparentemente, Spinoza no Tratado e Platão na Alegoria, parecem estar falando, cada um a seu modo, à sua forma de filosofar, dentre outras coisas, sobre um mesmo tema, e propondo possibilidades, alternativas comportamentais diferentes para o problema, vejamos.

Spinoza aponta sua arma filosófica para uma tríplice condenável, a saber: riqueza, honra e prazer sensual, que segundo ele, podem ser considerados da carne, outros, fruto do egoísmo e não de um individualismo. Com relação ao prazer sensual, Spinoza (2007, p. 21) declara que após ele, “segue-se uma profunda tristeza que, se não suspende a mente, a perturba, contudo, e a embota”. Na verdade, o que ele descreve é o fenômeno da saciaçao, ele estava, portanto, se referindo a uma operação estabelecedora, que por definição, altera a efetividade das consequências, afetando diretamente, a probabilidade do comportamento (Catania, 1999, p. 43). Ou seja, quando o indivíduo se sacia (supressão) com o prazer sensual, a probabilidade deste comportamento, ou seja, a “potência de agir”, conforme definição do próprio Spinoza na Ética (1957) diminui, naturalmente.

Nesse sentido, Spinoza condena enquanto fim último da vida e em alguma medida, o prazer sensual, bem como a riqueza e as honras, pois na busca por estes e posterior, ao seu encontro e gozo, o espírito fica em suspenso, como se de fato, repousasse em algum bem (Spinoza, 2007, p. 21, grifo nosso). Arbitrariamente, em consonância com Platão, é como se a tríplice condenável de Spinoza fosse correlato às sombras da caverna, as visões dos objetos e vozes que os prisioneiros alegariam como reais, que distraem a nossa atenção, estado de desrazão, conforme Platão. Assim, os escravos tomavam as sombras e imagens, como as coisas mesmas, repousando nelas, como se repousassem na verdade. Skinner (2006, p. 110) destaca que o comportamento controlado pelas leis ou regras nunca é igual ao exposto às contingências, porque uma descrição das contingências nunca é exata ou completa, logo os prisioneiros assim o eram porque estavam tomando as regras/sombras como contingências em si mesmas, pois não entraram em contato com o mundo e sentiram-no de verdade.

As honras são para Spinoza, um mal maior, pois não nos saciamos com elas, na verdade, quanto mais se tem, mais a alegria aumenta e somos forçosamente tentados a buscar mais. Uma interpretação comportamental dá razão à Spinoza, pois conforme (Baum, 2006, p. 190), quando ocorre uma condição de treino devidamente aplicada, nós, seres humanos, nos tornamos extremamente sensíveis a consequências aversivas providas por outrem, como a desaprovação e o isolamento social, ou seja, a não atenção dos outros, o que seria o contrário das honrarias, apontadas por Spinoza, que em termos comportamentais, equivaleria a reforço social generalizado, em forma de prestígio social, estar envolvido com a nobreza, ser convidado para eventos da sociedade e em ciclos sociais específicos, ser elogiado, ter a atenção das pessoas, comentários e likes nas redes sociais, ser literalmente, bajulado. E no mundo digital isso se acentua sobremaneira, pois “Hoje em dia, as coisas só começam a ter valor quando são vistas e expostas, quando chamam a atenção. Hoje, nos expomos no facebook, e com isso nos transformamos em mercadoria.” (HAN, p. 125, 2017). Nesse movimento há, portanto, uma conformação social, pois só professando as crenças comuns, acreditando nelas ou não, os fiéis podem ser reforçados. (DAWKINS, 2007, p. 446). Em termos comportamentais, somente vivendo as mesmas contingências e hoje mais do que nunca, as digitais, sendo fiéis a elas, é que podemos ser reforçados. Precisamos nos conformar e hoje, ter acesso às honrarias passa mais ainda por se expor, essa é a nova condição para o reforço social generalizado, não basta ser reforçado, tem que mostrar que se é, não basta ser feliz, tem que expor e lambuzar a felicidade na tela, na nossa página nas redes sociais e cara das pessoas, assim:

“A alegria que se encontra nas redes sociais de relacionamento tem, sobretudo a função de elevar o sentimento próprio narcísico. Ela forma uma massa de aplausos que dá atenção ao ego exposto ao modo de uma mercadoria.” (HAN, p. 93, 2017, grifos do autor).

As honrarias operam mais reforçadoras do que nunca!

Retomando para Platão, conforme caminha a narrativa do mito, um dos presos é forçosamente levado para fora da caverna, e nas palavras de Sócrates “Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é”. Então Sócrates, na pena de Platão, questiona Glauco, colocando que o homem após adquirir uma visão mais aguda para discriminar as sombras dos objetos reais, ou seja, as contingências de fato e não as regras ou autoregras se submeteria tal como Homero, a viver como escravo de um lavrador do que a viver o que se passaria na caverna, ou seja, as sombras, aventando que as honras e prestígio compartilhados entre os companheiros da caverna, não seriam, portanto, reforçadoras o suficiente para o nosso “novo” escravo manter-se naquela condição. Assim, ao retornar para a caverna, ele experimenta a reprovação dos companheiros: “Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá?”, ou seja, Platão nos dá uma amostra do poder dos reforçadores generalizados, ou mesmo das honrarias, melhor ainda, do seu contrário, a punição social, pois os seres humanos são extremamente sensíveis a convívio social intenso e recíproco, quando somos validados em um grupo social, mas também o contrário, a exclusão por pares é extremamente danosa para nossa espécie, um organismo social (CAMINHA, p. 178, 2017). Não lidamos bem com a rejeição.

Os homens que não experimentavam a luz, ou seja, as contingências reais, não estavam sob controle destas, mas sim do mundo que sempre viveram e definitivamente, os prisioneiros pareciam então, estarem confortáveis, pois falsas crenças podem ser reconfortantes tanto quanto as verdadeiras, até o momento que a ilusão cai (DAWKINS, p. 474, 2007). Ao retornar para a caverna, Platão pontua que o prisioneiro com a visão ainda confusa, sem tempo para se acostumar com a escuridão, seria punido pelos outros prisioneiros que como já pontuado, analisariam que a consequência pelo comportamento de ter ido até o alto, é voltar com a vista perdida, uma consequência apenas imediata do comportamento, não analisando toda a sequência da contingência de fato. Eles iriam ser tomados pelo medo, pela desconfiança, assim como o escravo que viu a luz, estariam abalados tal como por um terremoto, que destrói nossa firmeza no próprio solo que pisamos, estremecidos por verem questionadas crenças que desde sempre, habitualmente aprenderam a confiar (SAGAN, 2006).

Spinoza também conclui que para tê-las (as honrarias), é preciso viver a vida segundo a opinião dos outros, ou seja, temendo o que eles temem e buscando o que eles buscam, compartilhando os mesmos reforços e punições, as mesmas regras, atualmente falando, curtindo as mesmas coisas, postando as mesas coisas, semelhante à condição dos prisioneiros de Platão. Nosso novo escravo pode, portanto, ter decidido viver nas sombras. Porém, para muitos, que gozam de variabilidade comportamental, antes o gosto amargo da verdade do que o doce do xarope da ilusão (Comte-Sponville, 1997, p. 56).

Parece que a superstição é um caminho humano, talvez no esteio da evolução, tenha lá os seus propósitos. Mesmo porque parece que estudar e aprender, não só a ciência, é evitável, até mesmo indesejável. (SAGAN, p. 43, 2006). Buscamos uma razão, não uma causa, não uma relação entre eventos, mesmo uma explicação que beira o absurdo, mas que nos acalme de alguma forma, buscamos uma intenção. A seleção natural modelou o cérebro dos sapiens para o movimento intencional como atalho, biologicamente somos determinados, programados para atribuir intenções a entidades cujo comportamento estamos interessados (DAWKINS, p. 242, 2007). Então de fato, existe um substrato evolutivo no comportamento de “supersticionar” ou criar narrativas, modos de existência sobre-humanas, antinaturais, pois temos uma herança biológica emocional, a qual na esteira da nossa sobrevivência pode ter contribuído para imaginarmos coisas e nos esquivarmos delas, generalizando o perigo. Assim, nos apaixonamos (emoções) quando nos enganamos, ou nos enganamos (imaginamos) quando apaixonados (emocionamos), Montaigne vem em nosso socorro:

“E vemos que em suas paixões a alma prefere enganar a si mesma, erigindo-se um falso e fantástico objeto, inclusive contra sua própria crença, do que não agir contra alguma coisa. Assim, a raiva leva os animais a atacarem a pedra e o ferro que os machucou, e a se vingarem com dentadas em si mesmos da dor que sentem”. (Montaigne, p. 50. 1533-1592).

Veja como Ekman (2011, p. 56) parece trazer uma explicação sobre a dinâmica emocional para dar apoio a Montaigne:

“… quando estamos presos a uma emoção, tendemos a ignorar o conhecimento prévio, que pode desmentir aquilo que estamos sentindo. Ignoramos, da mesma forma, as novas informações trazidas pelo ambiente que não se encaixam em nossa emoção.”

Parece que quanto mais emocionados, mais dificuldades temos de discriminar o perigo real de um sinal de perigo e mesmo uma ausência de perigo, assim, as formas, apesar das emoções serem a base para discriminar sinais no ambiente, mas palavras, pessoas e coisas inofensivas, através de relações arbitrarias entre estímulos, se tornam ameaçadoras! Talvez nesse ponto, começamos a “supersticionar”.

Mas podemos mesmo suportar uma verdade que pode ser dilacerante? Como alcançá-la? É possível alcança-la? Qual a resposta de Platão presente no Mito da Caverna? O que representa o Bem em Platão? E em Spinoza? Qual a resposta de Spinoza presente no Tratado da reforma do entendimento? Qual a resposta do behaviorismo radical?

Spinoza, busca no Tratado um “verdadeiro bem” ou “sumo bem” (p.25), aquilo que ele coloca como tudo o que é feito e se produz necessariamente segundo uma ordem eterna e segundo leis da natureza, mais ainda, “o conhecimento que a mente possui com toda a natureza” (p.27), ele aponta, para isso, determinados métodos possíveis para alcança-lo, resumidamente: conhecer a natureza, conhecer a união da mente com a natureza, formar uma sociedade em que as pessoas possam em maior número, chegar a este entendimento de forma segura, firme, educar as crianças na filosofia moral, elaborar uma medicina com pretensão integral e dedicar-se às artes e à mecânica. Spinoza lembra Skinner (1978) em Walden II, propondo uma nova concepção de sociedade, de homem, de educação, compatíveis com o conhecimento científico. Além disso, Spinoza faz toda uma exposição sobre os gêneros de conhecimento humano, apontando falhas, criticando, desmistificando, colocando as coisas no seu devido lugar. Ele fala em modos de percepção e como elas influenciam o nosso conhecimento a respeito das coisas.

Resumidamente, e este é o ponto em Spinoza que convém destacar, ele conclui dentre outras coisas, apesar de uma obra inacabada, que quanto melhor os homens conhecerem as forças e a ordem da natureza, compreendendo-as, mais distante ele estará das coisas vãs, fúteis, desnecessárias. Nessa condição, nos preocuparíamos com a terra, e não com o paraíso, nos preocuparíamos com o comportamento, e não com a mente, nos preocuparíamos com o ambiente, e não com o inconsciente. É tentador trazê-lo na íntegra:

“quanto menos os homens conhecem a natureza, tanto mais facilmente podem forjar numerosas ficções, tais como árvores que falam, homens transformados subitamente em pedras, em fontes, espectros que aparecem nos espelhos, o nada que se torna alguma coisa, deuses que se transformam em animais, em homens, e uma infinidade de outras coisas desse gênero.” (SPINOZA, 2007, p. 57).

Spinoza ainda traz uma contribuição extremamente atual para o entendimento do mundo, destacando que tudo na natureza tem comércio, faz escambo com outras tantas coisas, ou seja, é produzido por outras coisas e produzem outras. Existe uma dialética primordial e incessante entre as coisas, organismos e todo o resto do mundo, parecem palavras de um behaviorista radical! Spinoza faz-nos, portanto, um convite para entrar em contato com o mundo, com o natural, com nós mesmos, pois tudo parece ser uma e mesma matéria “A terra que compõe o homem, e aquela em que se enraíza o trigo, a videira, a oliveira, são uma mesma e única matéria.” (ONFRAY, 2018, P. 60) Este caminho, que colocaria o homem e a terra, o homem e os outros animais, o homem e o universo no mesmo pacote, parece ser um caminho que nos libertaria de muitas superstições.  

Já Platão, ao final da alegoria, traz para Glauco uma possível interpretação:

“Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la.”

Platão parece relacionar uma visão das coisas materiais com a estada à prisão, o sol pode ser o conhecimento de outra ordem, e que a subida do prisioneiro ao alto e fora da caverna, seria a ascensão desta ao mundo inteligível, que é resumidamente, não o mundo real, não o mundo da vida, não o mundo da matéria, outro mundo, não este.

Platão ainda seduzindo Glauco quase que sofisticamente, aponta que nos confins deste mundo inteligível, aparece a ele a ideia do Bem, e que mesmo a percebendo com dificuldade, esta seria a causa de tudo que é reto e belo, ela (a ideia) é a verdade e a inteligência, no mundo visível, ela gera a luz, diante desse mel gramatical, Glauco assim o responde: “Tanto quanto sou capaz de compreender-te, concordo contigo.” Como um bom escravo, seguidor. Assim, encerra-se o diálogo.

Não caberia, por uma questão teórica e mesmo de objetivo do texto, elucidar o conceito de Bem em Platão, mesmo porque como retórica talvez ou mesmo estilo, Platão não o define objetivamente, mas apenas faz comparações, o diz metaforicamente, o propõe paradigmático e só o compreende em seu estado transcendente, pois só assim é possível. Para isto, Platão o relaciona a outros conceitos, como o de justiça, por exemplo, o Bem, portanto, não é um conceito isolado e percorre direta ou indiretamente, os diálogos de Platão (PAVIANI, p.78, 2012).

Onde está, portanto, a diferença entre Platão e Spinoza? Qual solução eles colocam para amortecer o peso das superstições nas nossas vidas? Qual alternativa podemos adotar? Qual é exequível? Prática? Terapêutica? Qual de fato funciona?

Platão coloca como alternativa às sombras, o conceito de Bem, Spinoza coloca o intercâmbio com a natureza. O primeiro parece um tanto quanto complicado, uma solução que não é pronta (ponto positivo), mas parece colocar uma outra superstição no lugar, Platão descontrói as sombras e coloca uma luz que cega tanto quanto, ao menos o mundo inteligível, transcendente, que escapa aos homens, que não está na terra. Parece que para combater o mundo sensível, Platão elabora outro mundo, se o mundo sensível nos faz errar, enganar, mentir, falsear, então ele é o nosso inimigo, afinal de contas, inventamos causas as mais diversas para os males que nos afligem, o que acusamos com ou sem razão para termos contra o que duelar (Montaigne, p. 50. 1533-1592). Platão queria um inimigo para opor-se à ideia do Bem. Montaigne não viveria no mundo inteligível de Platão.

Já o segundo, Spinoza, parece-nos mais coerente, alinhado com o Behaviorismo Radical, assumindo a pessoa como unidade em vez de dualidade, como uma parte indissociável do ambiente em vez de uma coisa descolada dele (Chiesa, p. 99. 2006). Spinoza parece nos colocar ao encontro do mundo, nos convida a senti-lo, cheirá-lo, pegá-lo, fazer trocas. Enquanto Platão olha para as ideias, para o mundo lá onde quer que seja, Spinoza olha para a terra e nos faz um alerta para não cairmos na tentação de “supersticionar”:

“…se procedermos o menos abstratamente possível e se começarmos, logo que seja viável, a partir dos primeiros elementos, isto é, da fonte e da origem da natureza, não haveremos de temer de nenhuma maneira, semelhante engano.” (Spinoza, 2007, p. 71)

Se Platão vai para o abstrato, Spinoza vai para o real, se Platão vai para as ideias, Spinoza vai para a troca com o mundo, se Platão propõe o Bem lá, Spinoza também, mas um bem aqui, imanente. Platão responde com a busca de um Bem que não caberia neste mundo, Spinoza nos colocaria a trabalhar, a dialogar, a trocar, a permutar, a afetar e sermos afetados, neste mundo. Spinoza nos colocaria em movimento, com o real, pois é onde unívoca e inequivocamente, estamos. Aos ideólogos de plantão e criadores de superstições, caberia uma defesa: “Se vocês não amam o real, não inspirem aversão por ele aos outros.” (P. 106 COMTE-SPONVILLE, 1997).

Referências

A Alegoria da caverna: A República, 514a-517c tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos Básicos de Filosofia: dos Pré-socráticos a Wittgenstein. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

BAUM, William M. Compreender o behaviorismo: comportamento, cultura e evolução/ William M. Baum; tradução Maria Teresa Araújo Silva… [et al.]. 2. ed. rev. e ampl. – Porto Alegre: Artmed, 2006.

CAMINHA, Renato Maiato. DARWIN PARA TERAPEUTAS: socialização, emoções, empatia e psicoterapia / Renato Maiato Caminha. – Novo Hamburgo: Sinopsys, 2019. 188 p.

CHIESA, Mecca. Behaviorismo radical: a filosofia e a ciência. Trad. Carlos Eduardo Cameschi. Brasília: Editora Celeiro, 2006.

COMTE-SPONVILLE, ANDRÉ. Bom dia, angústia! Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. – São Paulo: Martins Fontes, 1997.

EKMAN, PAUL. A linguagem das emoções : Revolucione sua comunicação e seus relacionamentos reconhecendo todas as expressões das pessoas ao redor. / tradução Carlos Szlak. — São Paulo: Lua de Papel, 2011.

GRAY, JOHN. A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana / John Gray; tradução de Clóvis Marques. – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2018.

HAN, Byung-Chul. SOCIEDADE DO CANSAÇO / Byung-Chul Han; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Tradução de Fernanda Ravagnani. – São Paulo: Companhia das letras, 2007.

MONTAIGNE, Michel de, 1533-1592. Ensaios: Que filosofar é aprender a morrer e outros ensaios / Michel de Montaigne; tradução Julia de Rosa Simões. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2017. 240 p.

ONFRAY, Michel. Cosmos: uma ontologia materialista. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

PAVIANI, Jayme. A Idéia de bem em Platão. Artigo Acadêmico, Universidade de Caxias do Sul, 2012.

SAGAN, CARL. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

SKINNER, B.F. 1904-1990. Sobre o behaviorismo / Tradução de Maria Penha Villalobos. 10 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

____________________. Walden II: uma sociedade do futuro. / Tradução de Raquel Moreno e Nelson Raul Saraiva. 2. ed. com uma nova introdução do autor. São Paulo, EPU, 1978.

SPINOZA, Baruch. Tratado da reforma do entendimento. Texto integral. Edição bilíngue latim/português. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2007, 95p.

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